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meu marido pregando com os filhos às barras da calça |
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Depois do Vaticano II, quando as portas da Igreja
se escancararam para o protagonismo dos leigos e suas famílias na
evangelização do mundo moderno inseridos em sua escola, trabalho e
lazer, o dilema de que tempo consagrar a Deus e que tempo dedicar ao
trabalho, à família e ao lazer começou a ser fonte de todo tipo de
culpa.
Se o trabalho se torna mais exigente e me
rouba algumas “horas extra”, culpo-me por não estar com meus filhos ou
não estar no meu ministério. Já imagino as crianças traumatizadas, nas
drogas, grudadas nos games ou na TV, futuros adultos medíocres e
inseguros a arrastar-se indiferentes pelo mundo. E o culpado? A culpada?
Eu, é claro!
Se é o apostolado que me arranca de casa em finais de semana de eventos em
noites de serviço, já vejo meus pimpolhos a odiar a Deus, a ter ciúmes
dele, revoltados contra este ladrão de pais e mães. Imagino-os mudando
de religião, resistentes à fé, refratários à verdade. A culpa,
naturalmente, é minha.
A culpa me engasga quando
estou de saída e as crianças se grudam em minhas pernas com seu choro
ora chantagista, ora desesperado. Tira meu sono quando, ao chegar, vejo
todos dormindo. Tira meu sossego quando constato que ninguém responde ao
meu animado “Oi pessoal!”, grudados que estão na TV que tanto condeno,
dentro e fora de casa.
Quando meu pouco tempo
deve-se ao excesso de trabalho ou estudo (sim, também o estudo pode ser
excessivo!), a culpa é minorada pela estóica desculpa: “Estou-me
esforçando para dar-lhes o melhor!” Mas quando meu pouco tempo deve-se
ao apostolado, não encontro nenhuma desculpa-clichê que se adeque.
Resultado: caio mais facilmente na culpa e, lançando mão de um mecanismo
de defesa, acuso a Igreja, o movimento, a comunidade, o padre, o
coordenador.
Madre Teresa de Calcutá, com a
simplicidade dos santos, resolveu facilmente este problema com a
seguinte fórmula, que costumava recomendar aos seus“colaboradores
leigos”: “Se você quer servir os pobres, se quer trabalhar em minha
obra, retire para os meus pobres e doentes do seu próprio tempo e não do
tempo dos seus filhos”.
Não é espantosamente
simples e prático? Não é sumamente libertador de todas as culpas? Por
uma questão de justiça, há um tempo para tudo, como ensina Eclesiastes
3. Há um tempo para mim, há um tempo para meu cônjuge, há um tempo para
meus filhos. Em qual categoria se encaixa o trabalho, o estudo, o
cabeleireiro, a TV, a happy hour com os colegas de trabalho? Em qual
categoria se encaixa o ouvir, o dar atenção, o partilhar, o planejar, o
sonhar junto? Qual a categoria do rir, do brincar, do sarar o dodói, de
corrigir e orientar?
Fácil responder. É daí, do
tempo legitimamente separado para você que você deve tirar para seu
ministério. Como no serviço à família não tem patrão nem relógio de
ponto, nossa tendência é “roubar” o tempo dela. No entanto, o tempo
dedicado ao apostolado, ao ministério, não pode ser tempo roubado. Deve,
necessariamente, ser tempo doado. Tempo que eu tiro daquele a que tenho
direito e livremente dou para o serviço aos outros.
Há
também o tempo que livremente minha família decide doar para o serviço
ao outro. Lembro-me de quando o meu caçula tinha cerca de cinco anos. Ao
rezarmos o terço em família, a irmã ofereceu o mistério “para a viagem
da mamãe amanhã, que ela faça uma boa pregação”. A reação do menor foi
imediata. Recusou-se terminantemente a rezar aquele mistério porque não
queria que a mamãe viajasse mais uma vez.
Foi
então que eu – e Deus – recebemos um dos maiores presentes de nosso
trabalho juntos. Com muita calma, meu marido foi claro: “Deus chamou a
mamãe para esta missão e nós queremos que ela a cumpra. A parte dela é
pregar. A nossa parte é rezar por ela e ficar alegres em casa sabendo
que a estamos repartindo com Deus para fazer outras pessoas felizes.”
Estava
resolvido o problema. Extinta a culpa, solucionado o dilema. Minha
família, nos mistérios seguintes do terço, já não era mais a mesma. Não
havia mais divisão de quem fica e quem vai. Todos iriam, cada um a seu
modo. Haviam entendido que a família inteira é chamada a evangelizar,
cada um ao seu modo, no seu ministério, como diz São Paulo em I Cor 12.
Naquela noite, havíamos nos tornado, verdadeiramente, uma igreja
doméstica, sonho do VaticanoII, orientação de João Paulo II, esperança
da Igreja.
Ao longo de minha caminhada de 30
anos, tenho entendido que há um só amor, uma só missão, um só tempo. O
amor a Deus não compete com o amor ao cônjuge e aos filhos que, por sua
vez, não compete com o amor àqueles que meu ministério atinge. É um só
amor que se manifesta de várias formas, conforme a legítima necessidade
de cada um, cuja satisfação me pede um serviço a que se chama ministério
ou exercício de um carisma.
Casar-se, como bem
diz São Paulo, é um carisma. O exercício deste carisma, selado pelo
sacramento, é um ministério que se exerce no serviço amoroso aos filhos e
ao cônjuge. Este carisma e ministério convive em harmonia e jamais
compete com outros serviços e ministérios que Deus deu a mim como pessoa
e à minha família como Igreja Doméstica. Pelo contrário, são
complementares e alimentam-se mutuamente.
Assim
como há um só amor, também há um só tempo: tempo de amar a Deus, como
explica Santa Teresinha. O tempo dividido me esquarteja. Unificado, me
unifica e unifica minha missão que é uma só: amar a Deus e ao meu irmão
segundo a Sua vontade, lembrado que meu irmão se chama marido, filha,
filho, genro, nora, pai, mãe, sogro, sogra, cunhados e vizinhos, colegas
de trabalho e porteiro. Lembrada, igualmente, que ele se chama ouvinte
de uma pregação, leitor de um artigo, espectador de um dvd, ouvinte da
rádio, formando, pessoa necessitada de oração, enfermo, pobre, pessoa
que me bate à porta, pessoa que nunca ouviu falar o nome de Jesus.
Há
um só amor, um só tempo, uma só missão, uma só família, uma só Igreja.
Quando entendermos isso, saberemos discernir qual é o tempo que nos
pertence e do qual podemos dispor para doar com gratuidade e alegria.
Saberemos também como motivar nossos filhos e cônjuges para dizerem
“sim” à mesma missão e à mesma Igreja, ao mesmo Deus.
Maria Emmir Nogueira
cofundadora da Comunidade Católica Shalom