A paulistana Luciana Zerwes Tremblay, de 34 anos, trabalhava
das 9 horas às 18 horas na empresa de distribuição de medicamentos da qual é
sócia. Há nove meses, ela abandonou o escritório. Faltavam cerca de 30 dias
para o nascimento de Brian, seu terceiro filho. Luciana pretendia voltar à
ativa depois de cumprir a licença-maternidade. Aos poucos, mudou de idéia.
“Deixar o trabalho foi uma decisão difícil. Passei meses pensando nisso até
perceber que, com três filhos pequenos, ficaria complicado conciliar carreira e
maternidade”, afirma. Além de Brian, Luciana tem os gêmeos Kevin e Clara, hoje
com 2 anos e 3 meses. “Quando eles nasceram, tentei me dividir, ficando na
empresa meio período. Mas vi que assim não cuidava deles nem trabalhava
direito.” A escolha de Luciana está longe de ser uma exceção. Mais de metade
das brasileiras que têm filhos e trabalham fora gostaria de largar o emprego e
passar todo o tempo com as crianças, segundo a pesquisa Mães
Contemporâneas/2006, do Ibope. Nos Estados Unidos, a nação onde as batalhas
feministas mais influenciaram as relações de trabalho no mundo, a taxa de mães
com emprego sofreu uma reversão. Durante 22 anos, o número de mães que
trabalham fora cresceu. A partir de 1998, passou a cair. Em 2005, 5,6 milhões
de mães americanas deixaram o emprego para cuidar dos filhos – 1,2 milhão a
mais que dez anos antes.
O que está mudando? Há apenas duas décadas, no Brasil, a
entrada maciça de mulheres no mundo do trabalho transformou radicalmente a
economia. O principal motivo foi a necessidade: a crise econômica da década de
80 empurrou as mulheres para o trabalho. Mas a cultura já havia sofrido uma
revolução. Elas passaram a encarar a realização profissional como um direito. E
a família tinha de ser repensada. O que parece estar ocorrendo agora é uma nova
reviravolta na escala de valores da sociedade.
“Ficar em casa cuidando das crianças virou um novo símbolo
de status”, afirmam Kellyanne Conway e Celinda Lake no livro What Women Really
Want (O Que as Mulheres Realmente Querem), ainda sem tradução no Brasil. Nos
anos 80 e 90, caracterizados pelo individualismo e pela competição profissional
acirrada, era normal sacrificar a vida pessoal em prol do sucesso – ou aquilo
que se considerava sucesso. Nesse modelo competitivo, a busca por resultados
tem elevado a carga de trabalho nas empresas e, conseqüentemente, o estresse.
Daí começou a ganhar força o discurso oposto, que mistura ecologia,
espiritualismo e bem-estar. As mulheres, ainda a meio caminho da plena
conquista da igualdade, começaram a se perguntar se ela vale a pena.
‘‘Eu chegava em casa depois das 11 da noite. Meu filho
estava dormindo havia horas. Eu morria de culpa’’ MÁRCIA ALVES, 36, contadora
O outro lado da equação entre maternidade e vida
profissional são os filhos. Até há pouco, falava-se no “tempo qualitativo” que
as mães passavam com eles. Esse conceito vem sendo destroçado. “Isso era uma
desculpa. Não existe qualidade sem um mínimo de quantidade de tempo, de
conexão, de acompanhamento da rotina”, diz a terapeuta de família Daniela da
Rocha Peres, de São Paulo. “Vejo no meu consultório muitas mães executivas que
abrem mão de todo s o tempo com os filhos e depois não sabem por que eles estão
com problemas. É muito cruel ver mães que nunca levam ou buscam seus filhos na escola,
que não conhecem seus amiguinhos, suas questões do dia-a-dia.” Hoje há um
consenso entre os psicólogos: a presença da mãe na vida dos filhos é
imprescindível. “Estamos num momento de transição dos modelos de mãe – e também
de pai”, diz Daniela. “Toda a família se desestrutura quando cada um está no
seu trabalho e as crianças estão totalmente terceirizadas. E não podemos ser
moralistas e jogar tudo isso no colo das mães só porque historicamente é assim
que vem sendo feito. Os pais também precisam participar dessa rotina.”
VOLTA DIFÍCIL
Para cuidar de Maurício, de 11 anos, e Mariana, de 7, Márcia
saiu do emprego. Quando tentou voltar ao mercado, estava defasada
O sentimento de perda no âmbito familiar já está produzindo
efeitos no mundo do trabalho. “Há mais gente hoje falando sobre uma maior
dedicação à maternidade”, diz a consultora de carreira paulista Vicky Bloch.
“Muitas mulheres jovens planejam ficar um pouco mais em casa quando os filhos
nascerem, para só depois retomar a carreira.” Até há bem pouco tempo, a decisão
de trocar a carreira pela dedicação exclusiva à família era percebida como
sinal de derrota ou como atestado de despreparo profissional. O que se esperava
das mulheres é que fossem bem-sucedidas na carreira e conseguissem, ainda, administrar
com perfeição o lar e o tempo com as crianças. A mãe que em nome dos filhos
desistisse do trabalho passava por desocupada. A carioca Cátia Moraes sentiu
isso na pele. Em 2001, ela escreveu Absolvendo a Cinderela (Editora Mauad). O
livro mostra como viviam as mulheres que optavam por ser donas de casa e o
preconceito que elas enfrentavam. “Fui muito criticada em chats, recebi dezenas
de e-mails me condenando, mas sempre deixei claro: o que eu defendo é a
liberdade de opção”, diz Cátia. “Descobri que eu me realizava muito na função
de mãe, de acompanhar a vida da minha filha. E garanto que existe, sim, vida
inteligente em mães de porta de escola.”
Apenas seis anos depois de Cátia, a administradora de
empresas Luciana Zerwes Tremblay fez a mesma escolha. A reação das amigas foi
completamente diferente. Nenhuma seguiu o exemplo, mas todas a apoiaram. E sua
mãe passou a lhe dar uma mesada. “Estou feliz porque a infância dos meus filhos
jamais voltará. Daqui a alguns anos posso voltar a trabalhar, e fazer isso pelo
resto da minha vida”, diz Luciana.
Se a complexidade do mundo moderno cria estresse, por outro
lado ela também abre oportunidades. Hoje, as carreiras são mais diversas e
fragmentadas. A norma é mudar de empresa a cada cinco ou seis anos, e de função
a cada três, segundo estudos de consultorias de recursos humanos. Por isso, a
interrupção da carreira – mesmo para quem nunca teve filhos – é um fato normal
no mundo do trabalho. E isso faz com que a opção de parar por uma causa nobre
(cuidar dos pimpolhos) soe menos estranha às mulheres. Em 2002, depois de uma
carreira de 15 anos no mercado de design de Belo Horizonte, a mineira Laura
Guimarães, de 37, decidiu largar a carteira assinada para ficar em casa com as
crianças. A opção obrigou a família a se adaptar a um padrão de vida mais
baixo. Mesmo assim, ela diz que não se arrepende. Ter mais tempo livre permitiu
a Laura não só cuidar de perto das filhas Nina, de 11 anos, e Gabriela, de 8,
como ampliou suas perspectivas profissionais. Laura criou, junto com a amiga
Juliana Sampaio, um blog dedicado às mães modernas, o Motherns. Depois da boa
repercussão no mundo virtual, as duas tornaram-se consultoras do programa de TV
Mothern, já na segunda temporada. Por não ser um emprego tradicional, com
horários rígidos, a nova atividade permitiu a Laura conciliar a carreira e os
filhos.
Nem sempre essas escolhas dão tão certo. Muitas vezes, o que
começa como uma opção temporária – cuidar dos filhos enquanto eles são pequenos
– afeta todo o futuro profissional. A carioca Márcia Alves, de 36 anos, é um
exemplo. Formada em Contabilidade e com
um emprego que durava dez anos, ela permaneceu em casa as 16 semanas
regulamentares da licença-maternidade. Quando retornou à rotina intensa do
trabalho, às vezes era obrigada a cumprir jornadas superiores a 12 horas por
dia. “Eu chegava em casa depois das 11 horas da noite. Meu filho já estava
dormindo havia muito tempo. Morria de culpa.” Ela também fazia plantões nos
fins de semana e, devido a uma expansão da empresa, teria de viajar
constantemente para São Paulo, ficando mais tempo longe dos filhos. “Quando eu
estava no emprego, imaginava como seria bom ter tempo para mim. Hoje, em casa,
fico pensando aonde teria chegado se continuasse trabalhando. Não digo que
jamais voltarei. A questão é que, quanto maior o tempo afastada, piores as
condições.” Ao procurar emprego, Márcia percebeu que teria mais despesas do que
seria capaz de suportar com os salários que eram oferecidos. “Eu precisaria de
mais uma empregada e gastaria com transporte para as crianças. Nunca valia a
pena.”
O que a contadora enfrentou costuma ser a norma.
“Empregadores realmente não querem contratar mulheres que ficaram um tempo
paradas”, diz Leslie Bennetts, autora do livro The Feminine Mistake (O Erro
Feminino) e editora da revista Vanity Fair. “O mercado entende que as pessoas
que interrompem a carreira não são habilitadas e estão desatualizadas. Chefes
querem atrair quem tenha um currículo consistente. Muitas mulheres sofrem com a
dificuldade de se recolocar no mercado.” Em alguns casos, recomeçar a partir de
um patamar mais baixo pode ser vantajoso no longo prazo, sobretudo no caso de
profissionais capacitadas, que podem recuperar o tempo perdido e voltar a
ascender na carreira. Mas nem sempre é assim. As mulheres que retrocedem no
campo profissional podem se sentir isoladas, entediadas e cair em depressão.
Para complicar ainda mais a escolha, a corrente de
defensores do trabalho feminino, nos Estados Unidos, passou a usar um novo
argumento. Não se trata, segundo ela, de uma opção entre carreira e família. A
própria segurança familiar é que estaria em jogo quando a mulher desiste de sua
profissão. “É um erro a mulher abandonar sua carreira”, diz Leslie Bennetts,
autora de Feminine Mistake. “Quando ela perde a independência financeira, fica
mais vulnerável a muitos riscos.” Não se trata apenas do divórcio, que faz o
padrão de vida das crianças cair. O marido pode morrer. Ou ser demitido. “É
crucial a mulher se manter auto-suficiente economicamente”, diz Leslie. “Assim
pode garantir a qualidade de vida dela própria e dos filhos.”
“Há muitos elementos que compõem o preço da maternidade”,
diz Ann Crittenden, autora dos livros If You’ve Raised Kids, You Can Manage
Anything (Se Você Criou Filhos, Pode Gerenciar Qualquer Coisa) e The Price of
Motherhood (O Preço da Maternidade). Segundo ela, a dificuldade de deixar o
trabalho e retornar mais tarde poderia ser contornada caso o mercado fosse mais
flexível. “Empregadores simplesmente não querem contratar mulheres com filhos
pequenos. Isso deveria ser contra a lei”, afirma. Para ela, conciliar carreira
e maternidade é mais difícil para mulheres que não ocupam altas posições, que
não têm poder de barganha e por isso podem ser demitidas sem grandes
transtornos para a empresa. “Os empregadores deveriam encarar a maternidade
como algo natural. E enxergar que as mulheres querem ter uma vida profissional,
não apenas a familiar”, diz Ann Crittenden.
Segundo um levantamento do site americano Salary.com, caso
fosse remunerada por todas as horas que trabalha, uma dona de casa nos Estados
Unidos deveria receber anualmente US$ 134 mil, algo como R$ 22 mil por mês. O
cálculo leva em conta o número de horas dedicado a tarefas como arrumar a casa,
cozinhar, cuidar dos filhos e gerenciar
a economia doméstica. Na conta desse salário, foi atribuído um valor para a
função de executiva do lar. Segundo a Organização Internacional do Trabalho,
nos países que calculam o serviço das donas de casa como parte da produção de
riquezas, ele corresponde a espantosos 60% do PIB. Isso explica, em parte, por
que o número de mulheres que trabalham fora vem caindo nos EUA.
Dados do IBGE mostram que a remuneração feminina é 30%
inferior à dos homens que ocupam cargos equivalentes. Além disso, a
informalidade é maior entre as mulheres. Isso significa que elas não contam
sequer com benefícios como a licença-maternidade. A depreciação do trabalho
feminino é atribuída a um conjunto de fatores. Embora não admitam abertamente,
muitas empresas pagam menos às mulheres pressupondo que elas terão menor
comprometimento com o trabalho quando surgirem demandas familiares. Em muitos
casos, mães nem são contratadas. Atualmente, uma mulher americana de 30 anos
sem filhos ganha o equivalente a 90% do salário de um homem. As que são mães
ganham apenas 70%, mesmo com idade e formação equivalentes. Uma explicação para
a diferença salarial poderia ser que as mães de família se concentram menos no
trabalho e, portanto, produzem menos. Mas isso é falso. Vários estudos
concluíram que as mulheres são mais produtivas que os homens.
Como agir quando alguém mostrar preconceito em relação a sua decisão de
voltar para casa?
Muitas pessoas – as próprias mulheres, principalmente – se
surpreendem negativamente ao saber que uma mulher deixou o trabalho para se
dedicar à casa e à família. O ideal é não responder. Fingir que não ouviu ou
não entendeu muitas vezes dribla situações estressantes. Se responder alguma
coisa for inevitável, pode-se manter o foco na máxima segundo a qual todos têm
liberdade para decidir seus rumos. Se foi derrubado um dia o preconceito contra
as primeiras mulheres que foram à luta nas ruas, que se derrube também agora o
preconceito contra as que optam pela casa.
Estar de volta ao mundo doméstico significa ter de arcar com todas as
tarefas do lar?
De modo algum. A idéia de dividir tarefas e
responsabilidades (práticas e de decisão) com o marido continua. Claro que, se
ele trabalha e a mulher não, ela cuidará de mais coisas. Mas uma casa não é um
hotel. O homem deve fazer parte – e as crianças também – de uma divisão justa
dessas tarefas.
Você passou muito tempo fora e perdeu o controle de sua casa. O que
fazer?
Um grupo inteiro terá de se adaptar à nova rotina. Isso
inclui mulher, marido, filhos, empregados domésticos e até mãe e sogra, caso
elas tenham sido a tábua de salvação por bastante tempo. A palavra de ordem é:
a dona da casa está de volta. Não importa se algo era feito de forma X quando a
mulher não estava. Agora ela está em casa e tem o direito de que as coisas
sejam feitas a sua maneira. Tudo com o máximo de jeito, é claro. O importante é
não ser visita na própria casa.
Qual o risco de interromper a carreira por dois ou três anos?
É possível retomá-la no mesmo patamar, com uma remuneração
equivalente? Depende da idade, da área profissional, do nível de formação e da
experiência anterior. Mas a resposta é: não será fácil. Ficar longe dois ou
três anos, na maioria dos casos, é afastar-se da prática profissional e dos
avanços tecnológicos. Se surgir uma oportunidade, provavelmente a remuneração
não será equivalente ao momento em que a mulher parou. Uma dica: quem quer
mesmo voltar deve aceitar recomeçar por um pouco menos. Qualquer porta de
entrada pode ser importante.
Quando os filhos crescerem, a mãe corre o risco de sentir-se inútil em
casa?
Se as crianças foram o único foco real por anos, é natural
que haja um vazio depois que elas crescerem e se tornarem mais independentes.
Não se devem jogar essas frustrações em cima delas, tentando manter a
interferência em suas vidas. Quando a mãe manteve atividades e interesses ao
longo desse tempo, será mais fácil intensificá-los para compensar a “perda” dos
filhos. Mesmo que não tenha mantido outros interesses, nunca é tarde para
buscar algo que lhe dê prazer.
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meu primeiro dia de trabalho após a licença maternidade de Clara |